segunda-feira, março 06, 2023

NINA MARIA E OS SAPATOS DA CASA TODY

Oi, pessoal! Faz tempo que eu estava querendo aparecer por aqui, mas as correrias do dia-a-dia somadas a uma sequela bizarra de Covid que aprisionou metade do meu vocabulário em um compartimento muito escondido do meu subconsciente me impediram. Não entrarei em detalhes sobre o stress das negociações com o meu cérebro para recuperar as minhas células de cronista, isso fica para outro dia porque o foco aqui é a minha mãe. Hoje ela completaria 75 anos, então resolvi prestar a minha homenagem com uma historinha.

Começarei explicando, para quem não é daqui, que existe em São Paulo uma loja muito tradicional de calçados, que já atendeu inúmeras gerações de paulistanos durante os seus setenta anos de funcionamento. Inaugurada em 1953, a Casa Tody tornou-se famosa por seus sapatos infantis com preços acessíveis, e também por sua numeração diferenciada, que acrescentava aqueles famosos 0,5 pontos que volta e meia fazem toda a diferença para o calçado não apertar ou sobrar em algum pé.

A nossa família sempre sofreu por calçar números inexatos, então somente na Casa Tody encontrávamos aquela sandália, tênis ou afim que nos serviria confortavelmente.

Consta que essa passagem aconteceu lá pela segunda metade da década de 1950. Mamãe estava com uns sete ou oito anos e precisava de sapatos novos. Minha avó estava ocupada com os preparativos para uma festa de aniversário, a casa deles não era exatamente próxima da Rua Augusta, onde até hoje fica a loja, então ela passou para o meu Vô Dino a incumbência de pegar o ônibus para levar a filha às compras. Chegando à Casa Tody, meu avô conduziu diretamente a pequena Nina para a vitrine onde se encontravam os modelos de calçados que a Vó Lucy recomendara. Um vendedor, que já os atendera outras vezes aproximou-se:

— Boa tarde, o que desejariam comprar?

— Este aqui – mamãe escolheu, indicando um par de botinas pretas.

— Mas filha, você não acha melhor aquele outro? – Vovô apontou para um sapato estilo boneca.

— Não, a bota é muito mais bonita – ela insistiu.

Vô Dino tentou novamente dissuadir a filha. Sua missão era clara: comprar calçados de festa para o aniversário do dia seguinte. Porém, mamãe continuava irredutível. Sapatos novos eram desconfortáveis e machucavam muito, ao contrário da botinas de liga, que não apenas encaixavam-se perfeitamente nos seus pés, como também eram ótimas para brincar com as primas durante as férias em Catanduva.

Muito aflito, meu avô tentou a última cartada que poderia fazer a filha mudar de ideia. Virou-se para o vendedor:

— Por acaso você já viu alguma menina que usa vestido junco com botas de montaria?

— Sim – o homem respondeu, prontamente. E apontou para a mamãe: – aquela ali.

Quando voltaram para casa, o Vô Dino levou uma baita bronca da esposa, que sempre fazia questão de ver toda a família muito elegante. Por fim, Vó Lucy resignou-se. A compra já estava feita, então só restava dar um jeito de fazer tudo combinar. Engomou com esmero a fita que enfeitaria o cabelo da filha, e depois separou uma calça rancheira, que não era exatamente a peça de roupa mais adequada para uma festa de aniversário, mas pelo menos formaria conjunto com as botinas pretas.

 

******


Manhê, obrigada por existir. Você sempre foi autêntica, usando botas e calças numa época onde a moda para as mulheres ditava o contrário. Obrigada por me ensinar que está tudo bem pensar fora da caixinha e que, desde que não prejudiquemos ninguém, não há problema algum em ser diferente.

Não sei exatamente como aniversários funcionam aí em cima, mas espero que a festa seja imensa, e que dê para terminar de matar as saudades daqueles que você ainda não tinha reencontrado porque estava falando pelos cotovelos.

As saudades aqui são imensas, mas agora consigo entender o que você queria dizer com “a gente se acostuma”. Ainda há a dor, mas as lembranças doces que temos de você ajudam a suavizar o sofrimento.

Muita gente apareceu para deixar mensagens pelo dia de hoje, e isso também acalenta demais o coração. Emociona demais ver o quanto o simples fato de você existir marcou tantos à sua volta.

Se sentimos a sua falta, é porque a sua presença aqui nos fez muito felizes.

E pode ter certeza de uma coisa, Manhê.

A sua alegria de viver mora agora no meu coração e estará presente por todos os dias que ainda percorrerei por aqui.

Um beijo enorme, minha querida.

Eu te amarei eternamente.

 


Vó Lucy, Tio Célio, Vô Dino e mamãe, usando calça rancheira e as botas que ela tanto amava. Retrato tirado aproximadamente no final da década de 1950.

 

Nenhum comentário: